O cadáver no lago

Quase duas horas tentando organizar os papéis do escritório, ele percebeu que o resto do dia não seria mais produtivo. Seus pensamentos iam e vinham entre o cadáver no lago e sua amante irresponsável.

Uma notificação no celular o despertou de todo aquele torpor, era uma mensagem no antigo aplicativo que usava para marcar os encontros com ela. Abriu a conversa e nela continha uma localização e horário, ele reconheceu o local, era o mesmo lago de antes.

Sua amante devia estar de palhaçada, pensou. Quem ela achava que era para dar um bolo nele e horas depois pedir outro encontro? Não fez questão de responder, apagou a mensagem e tentou se concentrar na papelada.

Faltando alguns minutos para as 18:00hrs, outra vez seu celular reclamou por atenção, era mais uma mensagem dela, dessa vez escrito: “Esqueceu de mim, Nio? Estou aqui, no último lugar onde conversamos”.

Aquilo não era possível, como ela saberia do apelido que fora inventado por sua mulher? Talvez estivesse tentando chantageá-lo, contudo, ele não ficaria à mercê de uma qualquer. Decidiu que iria encontrá-la e tirar satisfação de toda aquela patifaria.

Guardou todos os papéis e dirigiu de volta ao lago. O local estava completamente vazio, estranhou não haver carros policiais, muito menos faixas sinalizando a interdição da área. Não era possível que o cadáver não fora visto por mais ninguém. 

Aproximou-se do lago, olhando as águas agora calmas, e ali estava, a mulher ruiva flutuando na superfície. Ele olhou ao redor, nenhum sinal da sua amante, seu coração novamente começou a bater intensamente em seu peito.

Voltou os olhos ao cadáver, sentia-se levemente atraído – possuía certa beleza as chagas brotando no rosto semidecomposto, e seus cabelos ruivos chamavam-lhe a atenção, não estavam deteriorados como o resto do corpo.

A escuridão se intensificou, ele pegou o celular para poder iluminar. Com o aplicativo ainda aberto, ele percebeu que a mensagem antes enviada por sua amante havia desaparecido. Sentia-se fatigado, ouviu então um barulho vindo do lago, as águas voltaram a se agitar. Direcionou o aparelho ao alvoroço, bolhas estouravam em volta da mulher. Ele caiu sentado nos cascalhos ao perceber o cadáver levantar.

Permaneceu estático e boquiaberto. A luz do celular contra a criatura tornava-a mais tenebrosa, uma aura demoníaca emanava de seu corpo aquoso e apodrecido enquanto pairava ereta sobre as águas borbulhantes. Então a entidade flutuou em sua direção, a cabeça pendida para o lado com os cabelos rubros cobrindo-lhe o rosto.

Ele vedou os olhos com os braços como se ao abri-los tudo estaria acabado, não se lembrou de correr, ficou à espera do cadáver, mas nada aconteceu. O ebulir das águas cessou. Com muito custo, descobriu os olhos e iluminou o lago, a calmaria voltou, era hora de ir embora.

Levantou-se, decididamente não voltaria mais aquele lugar. Talvez tudo aquilo não tivesse passado de uma ilusão, estava tão cansado. Talvez o cadáver no lago nunca tivesse existido, muito menos sua amante. Olhou pela última vez para as águas escuras, iluminou-as, e então teve certeza, não fora alucinação, o rosto da morta o observava emergindo do fundo do lago.

Os olhos dela foram ao encontro dos seus pela derradeira vez, pois, absorto pelo olhar, perdeu os movimentos de todos os membros, deixou o celular cair dentro da água e em seguida teve o mesmo destino. O cadáver envolveu-se nele e, realizando uma dança da morte, submergiram para o fundo do lago.

Momentos depois, com o trepidar das águas, apenas um corpo emergiu à superfície, era um cadáver masculino, pálido pela decomposição e com uma peruca ruiva flutuando ao seu lado.


Autoria: Yuri Santos da Luz

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